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Thursday, March 17, 2005

Encontrei junto à praia um barco abandonado
daqueles de madeira solitária que não conversa com o mar.
Um barco pintado de azul muito escuro arranhado pelo vento
e com um cobertor descolorado pelo sol no interior.
Entrei no barco e soltei a corda que o amarrava na espuma.
Agarrei-me com mãos fortes cravavando medo na madeira dura.
"Um pedaço de madeira nunca afunda" permanece no olhar.
como uma folha de outono.

As ondas intimidam se as olho
mas a minha cabeça, agora baixa
encontra apenas a textura da madeira, fixando
a eternidade de cada nervura e a opacidade macia
da sua permanencia.
o barco entregou-se. e o mar agora está calmo.

Mas imenso.
Rodo em torno de mim e contraio os musculos da face.os olhos
acompanham o ar que inspiro e o corpo anseia não querer saber onde está.
O barco não precisa de falar com o mar
mas a minha boca. só pensa em ouvir.
Rodo novamente
e agora o sol assusta-me.não quero vê-lo.
magoa-me a forma repetida como me olha
e doi-me não saber o nome dele.
Procuro então o cobertor velho sentindo que o vento
quer levar o meu corpo.
que como um papagaio o meu corpo existe ainda porque
o barco não precisou de falar comigo para
agarrar o fio que me permite voar.

Wednesday, March 02, 2005

Tenho uma porta no tecto da minha casa
que abro quando a musica faz de mim um telhado com luar.
uma faísca em sentimentos de riacho que corre em fúria por entre rochas.
Não é fúria. a textura da água em corrente equilibra-se com a realidade
que tenta impor a sua existência. mas em segredo
a água esconde o dia em que vai fazer desaparecer a rocha.

A água é tão mais forte que eu.
energia que tem receio de se libertar. de reconhecer que
a realidade não existe. apenas surpresa. brilho em cada olhar
que sorri cada esforço por não ser real.
Isso é vida. Uma flor que levo no bolso da camisa. Um desenho
que pinto na face antes de sair de casa.
Uns sapatos a quem digo “Bom dia”. Um grito
que dou deitado na areia de uma praia.
Um licor que bebo fora de horas ou um luar
que ouso não gostar. Uma árvore, sem folhas,
que procuro para ter sombra.
Um velho com olhar de quem não quer saber.
uma cor nova que tento inventar. um café curto porque sim.
Um caminhar discreto pela berma. ousando cada estrela.

A porta é de madeira escura. Lembra um daqueles baús misteriosos
que sonhamos.
A porta esconde coisas antigas que observo. Pormenores de tempos
passados em que recortes de orgulho preenchiam a vida. sem pressas.
Era vida em cada objecto.
Tem lá um candeeiro em forma de flor. Ferro eterno
que se cruza em horas dedicadas a um aroma.
O chão. é de madeira encerada
que lembra domingos em família e tardes sem razão.
Um dos cantos da sala pertence a um cadeirão. Madeira envolvida em
couro de cor usada sobre uma sombra de mistério e poder.
Quero sentar-me nele: sentir-me parte de alguém que já lá se sentou. Que
lá deixou fantasias: subiu a um banco de jardim e falou alto para quem passava:
“quero que me achem louco. mas que acreditem em mim”
E eu fico a ver a luz, sôfrega. Tremula no reboco irregular da parede. e passeio
o pensamento pela textura defeituosa que me atrai. me embala o olhar
na perfeição com que me abstraio da sua forma. Imperfeita como eu.

Escondido na penumbra vive um móvel escuro de madeira. sem brilho.
com cinco gavetas que nunca abri. Quero que tenha lá dentro brinquedos antigos
e fotografias sem cor. de pessoas que não conheço. daquelas com olhares
como o meu quando olho para mim.
Quero que tenha também relógios antigos que não se usam mais. muitos.
Mas não sei se algum dia as abrirei.

Em cima do móvel que sinto por vezes distante está uma jarra em porcelana.
com desenhos em tinta azul que se perdem na realidade. Historias que alguém sonhou.
alguém viveu. estampadas no tempo que passa
como figuras que apenas enfeitam uma jarra.
Sei que são mais que isso. Tesouros. Tempo perdido num sonho que perdura
apenas para quem sonha. E na jarra existem flores.
Sempre acabadas de colher.
Talvez alguém viva aqui.

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